Euges Lima[1]
Nas
últimas décadas do século passado, sobretudo nos anos de 1970 e 1980, a
historiografia passou por um processo de renovação. Esse novo e fértil momento
da produção historiográfica ficou conhecido como “virada antropológica”. É
sobre essa relação entre história e antropologia, a aproximação entre essas
duas áreas do conhecimento - que alguns já denominam de história antropológica
-, que pretendemos discutir e analisar.
Dentre
as ciências sociais, podemos afirmar que a história é uma das que mais se
desenvolveram nas últimas décadas e essa evolução se deu, sem dúvida, por conta
do caráter interdisciplinar imprimido pela produção historiográfica
contemporânea. Os horizontes dos historiadores se expandiram, novas temáticas,
novos objetos e novos métodos foram adotados. Tudo isso, graças à aproximação
da história com a antropologia.
Mas
essa perspectiva cultural é realmente tão nova assim? Será que essa abordagem
nasce com a Escola dos Annales, ou melhor, com o Movimento dos Annales? Não, já
nos séculos XVIII e XIX, historiadores como Legrand d’Aussy e Michelet se
ocupam do campo desprezado pela história factual, dos acontecimentos, ou seja,
se preocupam em estudar uma história social dos costumes dos franceses, das
mentalidades; uma história com uma abordagem cultural, mais estrutural que
factual. Em 1782, Legrand d’Aussy, por exemplo, já demonstra a sua insatisfação
com o tipo de história que se vinha fazendo até então, uma história
essencialmente política e voltada para os grandes acontecimentos, assim como, para
os feitos dos reis, generais, etc.
Vejamos
como Legrand d’Aussy, já nos séc. XVIII, em “História da Vida Privada dos
Franceses”, faz severas críticas a esse tipo de história - factual - que era
predominante na época:
“Obrigado, pelos
grandes acontecimentos que deve contar, a estudar o que não se oferece a ele
com certa importância, ele só admite na cena os reis, os ministros, os generais
de exército e toda aquela classe de homens famosos cujos talentos ou erros,
esforços ou intrigas produziram a infelicidade ou a prosperidade do Estado. No
entanto, o burguês em sua cidade, o camponês em sua choupana, o gentil-homem em
seu castelo, o francês, enfim, no meio de seus trabalhos, de seus prazeres, no
seio de sua família e de seus filhos, eis o que não nos pode representar”.
Para
o historiador cultural contemporâneo dos séculos XX e XXI, essa perspectiva
histórica que insere os chamados grupos subalternos na história, que percebe na
cultura de uma sociedade um objeto histórico, parece algo muito pertinente e até
certo ponto natural. Como disse André Burguière (LE GOFF, 1993, p.125),
poderíamos muito bem pensar que essa citação acima que expressa sobre as
insuficiências do historiador, fosse de um Lucien Febvre ou até mesmo de um
Jacques Le Goff ou ainda de um George Duby. No entanto, trata-se de um olhar
etnológico no século XVIII, que torna Legrand um historiador além do seu tempo,
em que para ele a história é “uma mistura constante de comportamentos herdados
(portanto de permanências) e de fenômenos de adaptação ou de invenção”.
Um
outro precursor do que hoje conhecemos como nova história cultural é Michelet.
No século XIX, em meio a uma história positivista norteada por uma metodologia
inspirada nos moldes das ciências experimentais, onde o elemento básico era o
fato histórico, ou seja, o acontecimento; Michelet surge como um historiador
que busca outros modelos de explicação da sociedade, uma história da moda
alimentar, da sensibilidade, do comportamento das elites francesas no século
XVIII, das mentalidades, enfim, uma história etnológica. Nesse sentido,
assevera Jacques Le Goff (1993, p.22): "Lucien Febvre ontem, um Fernand
Braudel hoje, que primeiro viram em Michelet o pai da história nova, da
história total que quer abarcar o passado em toda a sua totalidade, desde a
cultura material até às mentalidades".
Como
vimos nesse breve histórico das origens da nova história cultural, Marc Bloch e
Lucien Febvre tiveram em quem se inspirar e são eles que em fins dos anos 20,
na França, vão fundar a revista dos Annales, como uma forma de demonstrar toda
a sua insatisfação com relação à história política, permeada por análises
pobres e concepções redutoras e centralizadoras, que reduziam o campo histórico
ao domínio da vida pública. É a partir daí que esses historiadores vão
resgatar, ou melhor, reaproximar a etnologia da história, contribuindo
sobejamente para renovação do conhecimento histórico contemporâneo.
Comumente,
a chamada Escola dos Annales, é dividida em três gerações, a primeira
representada por Lucien Febvre e Marc Bloch - seus fundadores - a segunda
notadamente representada pela liderança de Fernand Braudel e por fim, a
terceira, integrada entre outros, por Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel
Le Roy Ladurie.
É a
partir dessa terceira geração, que a dimensão antropológica se fazer mais
presente na historiografia contemporânea. Surgida em fins da década de 1970,
como uma reação à história quantitativa, predominante na geração anterior, esse
movimento, denominado “virada antropológica”, "pode ser descrito, com mais
exatidão, como uma mudança em direção à antropologia cultural ou 'simbólica'
" (BURKE, 1997, p.94). Os historiadores dos anos de 1970 e 1980
estabeleceram um diálogo mais intenso e profícuo com a antropologia, vários
antropólogos como Pierre Bourdieu, Michel de Certeau, Erving Goffman e Victor
Turner vão influenciar os trabalhos desses historiadores. As idéias que
migraram da chamada "nova antropologia simbólica" para história,
foram adotadas, adaptadas e utilizadas para construir uma história mais
antropológica.
A
inserção de novas temáticas, assim como, uma apreensão do simbólico por parte
do historiador, tem sido pontos fundamentais nesse novo saber e fazer
histórico. Temas como o medo, o corpo, a morte, a loucura, o clima, a
feminilidade, entre outros, tem sido objetos de estudo desse novo historiador,
o que na perspectiva da história tradicional era algo praticamente impensável.
Todos estes aspectos da vida humana passam a ter uma nova dimensão, ou seja, a
perspectiva cultural. Nesse sentido assinala Burke (1996, p.11):
“O que era
previamente considerado imutável é agora encarado como uma 'construção
cultural', sujeita a variações, tanto no tempo como no espaço [...]. A base
filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou culturalmente
constituída. O compartilhar dessa idéia, ou sua suposição, por muitos
historiadores sociais e antropólogos sociais ajuda a explicar a recente
convergência entre essas duas disciplinas”.
Um outro ponto que os novos historiadores e
antropólogos culturais parecem convergir é com relação à questão do simbólico.
O diálogo da história com a antropologia se dá muito em torno da apreensão do
simbólico. Como no dizer de Geovanni Levi: "O historiador não está
simplesmente preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em
definir as ambiguidades do mundo simbólico" (ARANHA, 1997, p.49).
Historiadores
como Carlo Ginzburg e Robert Darnton, em seus trabalhos, buscam uma aproximação
vantajosa com a antropologia, principalmente com uma “antropologia estrutural
simbólica”. Só para citar alguns: “História Noturna: decifrando o sabá”, de
Ginzburg. “O grande massacre dos gatos e Outros Episódios da História Cultural
Francesa”, de Darnton.
É
importante ressaltar que esse diálogo com a antropologia não quer dizer que o
historiador perca sua identidade, mas tão-somente utilize a disciplina vizinha
para resolver questões que os métodos da história não possuem, como, por
exemplo, valorizar o que os antropólogos chamam de “a visão do nativo”, para a
partir daí entender os significados implícitos na sua visão de mundo, assim
como, a busca por formas simbólicas análogas em sociedades diferente no tempo e
no espaço, etc. Portanto, ao historiador cabe agir de forma interdisciplinar,
sem, contudo, perder de vista sua perspectiva histórica e resolver
historicamente aquilo em que a antropologia não pode avançar, ou seja, analisar
a história a partir de uma visão antropológica sim, porém, a partir de uma
adesão crítica.
Referências
ARANHA, Gervácio Batista. A nova história, seus temas e métodos: um diálogo com a
Antropologia. Revista Raízes. Nº 14, 1997, p. 45-81.
________. A
história renovada: a emergência de novos paradigmas. Revista Saeculum. Nº
4/5, 1998/1999, p. 41-72.
BURKE, Peter. A
escrita da história. São Paulo: UNESP, 1996.
________. A Escola
dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo:
UNESP, 1997.
________. Variedade
de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
DARNTON, Robert. O
Beijo de Lamourett: mídia, cultura e debates. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
LE GOFF, Jacques. Para
um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente.
Lisboa: Estampa, 1979.
________. et al. A
nova história. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[1] Professor
de história do Ensino Médio da Rede Pública Estadual do Maranhão e
vice-presidente do IHGM.
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