sábado, 15 de setembro de 2012

Presente de Grego


Do site da Revista de História da Biblioteca Nacional

São Luís completa 400 anos no dia 8 de setembro e vai receber do governo do Maranhão um presente orçado em nada menos que R$100 milhões: a chamada Via Expressa, primeira avenida de grande porte da capital, com cerca de nove quilômetros de extensão. A previsão é que dois quilômetros já estejam prontos este mês. A festança, no entanto, gera polêmica. A obra não foi aprovada pelo Conselho Regional de Engenharia (Crea-MA) e acabou embargada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),pois foi iniciada em 2011sem nenhum estudo arqueológico, como a lei exige. Mesmo assim, os tratores continuaram a trabalhar, revirando o bairro do Vinhais Velho, onde há vestígios de ocupação anterior à fundação da cidade. 
O caso começou a ser investigado pela Procuradoria da República no Maranhão em agosto de 2011. Segundo o procurador Alexandre Soares, em abril deste ano foi estabelecido um acordo indicando as medidas necessárias de salvamento e proteção do material arqueológico. “A equipe de arqueólogos contratada pelo estado apresentou um relatório afirmando que realmente houve dano ao patrimônio durante as obras, mas que agora as medidas estão sendo cumpridas. As obras na região do Vinhais Velho deverão ficar paralisadas até que o Iphan apresente um relatório confirmando essas informações, e que nós realizemos uma audiência com todos os envolvidos, incluindo moradores”, afirma o procurador.
Os moradores estão envolvidos a fundo nessa história e já conseguiram algumas vitórias. De acordo com Leopoldo Vaz, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, o traçado da Via Expressa passaria a poucos metros da Igreja de São João Batista, que é tombada, e desalojaria mais de trinta famílias no Vinhais Velho. Protestos dos moradores fizeram o número de casas desapropriadas diminuir para oito e a via se afastar 100 metros da igreja. “Solicitamos a criação de um museu para guardar as peças arqueológicas encontradas aqui e estamos negociando a compensação dos moradores, porque as desapropriações ficaram muito aquém dos valores dos imóveis”, diz Vaz.
Mesmo com as mudanças, a estrada vai cortar a vila ao meio, e a Igreja de São João Batista poderá ser prejudicada. “Certamente haverá prejuízos, mas isso independe da nossa vontade. Já mandamos um documento para a Secretaria de Infraestrutura, responsável pelas obras, dizendo que esse patrimônio é tombado e deve ser respeitado”, conta Andrea Costa, diretora do Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Maranhão. Procurada pela RHBN, a Secretaria de Infraestrutura do estado (Sinfra) não se manifestou sobre as denúncias.
A igreja tombada tem relação direta com os primórdios do Vinhais Velho. Ali, em outubro de 1612, os índios tupinambás ergueram uma capela, benzida pelos padres capuchinhos da missão francesa que colonizava o Maranhão. É este evento que marca a fundação do bairro. A capela, que desabou várias vezes, foi sempre reerguida no mesmo lugar.
De acordo com a historiadora Antonia da Silva Mota, da Universidade Federal do Maranhão, os franceses cederam o território do Maranhão aos portugueses em 1615. No local onde hoje está Vinhais Velho foi então organizada a primeira missão jesuítica no norte da Colônia. “Em 1757, o local ganhou o nome de Vila dos Vinhais. Acreditamos que durante o século XIX se consolidou o processo de expulsão das populações indígenas. Poucos descendentes resistiram. Entre eles, a família Ribeiro, que tem cerca de 50 membros no Vinhais Velho”, diz Antonia. Segundo ela, há duas cartas no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, enviadas pelo índio Manoel Ribeiro, da Vila de Vinhais, em 1782 e 1790. Ele seria ancestral da família de mesmo sobrenome que vive hoje no bairro. “Além dos traços físicos inegáveis, os mais velhos da família Ribeiro contam que seus avós e bisavós estão enterrados no cemitério da comunidade, fundado pelos jesuítas”.
Outros moradores, como Carlos Jacinto Penha, mudaram-se para o Vinhais Velho há cerca de 30 anos, quando o bairro passou a ser menos isolado. O comerciante é dono de uma das 35 residências que o governo havia decidido desapropriar. Depois das negociações, ele se livrou de parte do problema, mas o quintal da casa ainda está no trajeto da via expressa. “Soubemos disso tudo em setembro de 2011. Os engenheiros da Sinfra diziam que, como é uma obra pública, não teríamos como evitar o despejo. Um dos moradores tentou explicar para uma engenheira a importância das casas, mas ela respondeu que o governo não avalia valor sentimental”, lembra Carlos Jacinto.

Pelo visto, tampouco avalia valor arqueológico. Segundo Kátia Bogéa,superintendente do Iphan no Maranhão, foi preciso entrar na Justiça para ter acesso ao licenciamento ambiental da obra. “Nós pedimos, mas eles não mandaram o licenciamento e iniciaram as obras mesmo assim. Quando finalmente recebemos o material, não tinha uma palavra sequer sobre o patrimônio cultural, que inclui o patrimônio arqueológico. Depois de nos pronunciarmos no Ministério Público Federal, ficou definido que o trecho do Vinhais Velho em diante só poderia passar por obras depois do estudo arqueológico. Ainda assim, as máquinas entraram no bairro”, denuncia Kátia.
Arqueólogos só foram contratados em fevereiro deste ano, depois de nova intervenção do Iphan. A equipe, chefiada por Cínthia Moreira, encontrou mais de 80 peças. “Muito material já estava revirado. Se as obras não tivessem sido iniciadas, teríamos encontrado o sítio com as peças ainda no subsolo. Só conseguimos fazer isso nos quintais das casas, onde havia peças de até 20 centímetros”, conta Cínthia. Em um mês de trabalho, a equipe encontrou artefatos de cerâmica tupinambá e faianças. Ainda não foi feito um estudo para confirmar a datação, mas algumas peças podem ser anteriores à ocupação francesa.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Especial sobre os 400 anos de São Luís


A TV Difusora (canal 4) vem realizando um especial sobre os 400 anos de São Luís, contando um pouco da história da cidade e mostrando os pontos de vistas de especialistas, historiadores e professores de história.
 O documentário está dividido em vários capítulos,  dia 8 de setembro foi a estréia e amanhã, sábado, será transmitido o segundo capítulo da série, às 18:45, abordando entre outros temas, a fundação de São Luís. 
O Vice-presidente do IHGM, Prof. Euges Lima, foi entrevistado e falou um pouco sobre a controvérsia da Fundação de São Luís e explicou como surgiu no início do século XX a versão oficial de uma São Luís fundada por franceses, segundo ele, “a comemoração do aniversário da cidade, a partir de uma origem francesa, é produto de uma tradição inventada em 1912, ano do primeiro aniversário da cidade, já com trezentos anos".


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Entrevista com Mary Del Priore

Entrevista ao jornal  Estado do Maranhão (08/12):

ESTADO DO MARANHÃO - Para você como se dá a relação entre história e literatura?


MARY DEL PRIORE - Alguém já definiu a história como "um romance de verdade". Ou um romance com notas de rodapé. De fato, quando combinamos dramas pessoais com o panorama geral da história do país, temos um excelente resultado. Aproximamos o leitor do passado, mas, o fazemos através de uma escrita ...
que o convida a olhar de forma diferente: atento aos detalhes, curioso dos cenários, sensível aos personagens. Enfim, por meio de uma descrição quase cinematográfica, conseguimos transportá-lo a outra época. A linguagem é o tapete mágico capaz de promover esse deslocamento. Tenho muito cuidado com as palavras e procuro recriar os mundos que perdemos. E todo esse esforço, apoiado na pesquisa de arquivos e em documentos históricos, resulta em novas páginas e novas informações sobre o que nos parecia tão velho e conhecido.


EM - Quais elementos um livro deve conter para “prender” o leitor?

MDP - O primeiro deles é a paixão do autor pelo objeto. Acho impossível escrever bons livros sem estar comprometido com o assunto, com os personagens e com a narrativa. O segundo, é criar condições para que o leitor se sinta transportado no tempo. Para isso, é preciso um grande conhecimento dos detalhes, da vida cotidiana, dos cenários e paisagens que cercaram nosso antepassados. Não basta narrar fatos, magros e descarnados. É preciso que o leitor se sinta ali, como uma espécie de espectador da história. E finalmente, penso que é preciso despir os personagens de sua aura mítica e vê-los como seres de carne e osso, humanos nas suas glórias e desgraças. Quando D. Pedro deixa de ser visto como um jovem imperador no alto do cavalo branco, para ser mostrado como um simples enamorado que escreve bilhetes apaixonados á sua amada, compreendemos melhor o homem que ele foi. Compartilhar essa experiência é fundamental.

EM - Fale sobre seu processo de escrita.

MDP - Sou extremamente organizada e rígida com a disciplina. Acordo muito cedo, pois moro na roça e logo depois do café, já estou no computador. Gosto de escrever nas manhãs e uso às tardes para organizar o material previamente pesquisado e reler a bibliografia pertinente ao assunto estudado. Diferentemente de muita gente para quem escrever é um esforço, adoro o trabalho da escrita que faço com facilidade e prazer.

EM - Como será sua participação no Festival Geia de Literatura?

MDP -  Fui convidada a apresentar meus trabalhos a estudantes do ensino fundamental e médio. Terei o maior prazer em lhes falar sobre história e de como ela tem impacto na identidade das pessoas, assim como despertar-lhes para a importância da memória e da preservação num estado onde - como dizem os historiadores franceses - tudo é história! O mais importante é que tenho um livro sobre história das Crianças no Brasil e vou aproveitar para contar-lhes como foi dura e difícil a vida de seus antepassados.

EM - Em Histórias Íntimas, você, de certa forma, traça um paralelo entre o machismo e o erotismo, dando destaque à sexualidade feminina, ao debater que fora de casa elas querem ser independentes, mas em casa preferem ser princesas. Isso não seria um paradoxo? E o que justificaria esse comportamento feminino?

MDP - O fio condutor do livro é a análise do que chamo de "a dupla cara do brasileiro": na rua liberal, em casa, machista, homofóbico e racista. Mostro que, ao longo de quinhentos anos, construímos essa duplicidade e que a grande luta dos tempos atuais é combatê-la. As mulheres são, historicamente, as portadores destes preconceitos. São elas que gostam de ser chamadas de tudo o que é comestível (gostosa e docinho!), não deixam os maridos lavar a louça e se a namorada do filho lhe dá o fora, a culpa é dela que "não presta". Esses comportamentos machistas são reproduzidos na intimidade do lar, contaminando nosso filhos que os reproduzem com suas próprias mulheres. O grande desafio hoje é evitar a duplicidade e combater a intolerância frente ao diferente.

EM - Festival Geia tem uma preocupação em estimular a leitura pelos mais jovens, crianças e adolescentes, mas seus livros não parecem muito indicado para este público, ainda que em Histórias Íntimas você diga que a Barbie, a boneca dos sonhos de quase todas as meninas, na verdade “as ensina a serem putas”. Como falar de sexualidade com crianças e adolescentes e por que a aparentemente inocente Barbie acaba desempenhando este papel?

MDP - Reduzir Histórias Íntimas a uma frase é lamentável. Mas vamos a ela. Desde tempos imemoriais, as bonecas tem servido para preparar as mulheres para a maternidade e a vida do lar: mamadeiras, fraldas, roupinhas, todo o universo do feminino e do papel de mãe girava em torno das bonecas. Os tempos mudaram. Mas desta mudança, a Barbie só representa um lado: o do consumo. Não basta possuir a boneca que não tem corpo de bebê, mas de mulher. É preciso acrescentar a parafernália toda: a cozinha da Barbie, o carro da Barbie, as roupas da Barbie, e por que não, o marido da Barbie. Tudo é comprado. Tudo é "ter". Nada se aprende e muito menos que as mulheres fizeram grandes mudanças no sentido de caminhar com as próprias pernas, em busca de auto-suficiência. Pior é o protótipo da Barbie: loura, peituda, de pernas longas. Completamente diferente das meninas brasileiras, morenas, mulatas e negras. Pergunto-me como fica a auto-estima de uma delas, brincando com uma boneca que é como elas nunca serão! Quanto a estimular a leitura dos jovens, não será falando de sexo que vou fazê-lo. Mas, mostrando que o livro, qualquer um deles, é o melhor amigo que se possa ter. Fiel, sempre aberto a uma conversa, a uma viagem, a um aprendizado. Que ler é fundamental para sabermos quem somos e escolhermos nosso lugar no mundo.

EM - “A Carne e o Sangue” retrata a vida particular da realeza brasileira do século XIX, focando no triângulo amoroso vivido pela imperatriz Maria Leopoldina, seu marido, o imperador Dom Pedro I e a amante dele, Domitila, que ganhou o título de Marquesa de Santos. De que forma revelar essas histórias íntimas de personalidades históricas do Brasil pode aumentar o conhecimento que a população tem da formação histórico-social brasileira?

MDP - Ao percorrer o livro, os leitores se darão conta que o triângulo amoroso ocorreu numa das épocas mais atribuladas de nossa história. Que as paixões vividas por D. Pedro extravasaram a alcova, refletindo-se na vida política e social do país. Que a confusão entre vida pública e vida privada - tão atual - sempre esteve presente em nossa história. Que os três personagens principais foram figuras centrais de um processo de Independência com forte teor conservador, garantido por meio de um pacto com as elites. E mais interessante: que a cidade, e o povo carioca, participaram ativamente da ascensão e queda do imperador, por meio de pasquins, de grafites pelos muros da cidade e de ironias.

EM - Se a Proclamação da República não tivesse alterado os rumos da história do Brasil, o país teria um neto de Dom Pedro II como terceiro imperador. É essa a história que é retratada em O Príncipe Maldito, um traço da história nacional que o grande público desconhece, possivelmente. Por que a história oficial, contada nos livros de história das escolas, quase nunca corresponde à história real?

MDP - Penso que faltam pessoas interessadas na transmissão da história do Brasil para as escolas. A Universidade tem realizado trabalhos fantásticos que não extravasam seus muros. Meu primeiro livro infanto-juvenil vai sair em setembro, pela editora Planeta. Chama-se "A descoberta do Novo Mundo". nele utilizo a história real de crianças que cruzaram o oceano Atlântico como grumetes, nos navios de carreira, e, através de seus olhos, conto o que foi a chegada à Terra de Santa Cruz. Será o primeiro de uma série. Digo sempre que ser historiador é ser um profissional do entusiasmo. Meu objetivo é fazer com que todos se interessem por historia e entendam a importância, mas também, o prazer da disciplina.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

CATÓLICOS E HUGUENOTES: diversidade religiosa e duplicidade de comando na França Equinocial

                                                                                    

                                                                        Por Euges Silva de Lima*



Detalhe do painel de Dila Rodrigues, retratando a
cerimônia do 8 de setembro
 O sonho francês em estabelecer uma colônia nas terras do Maranhão, remonta a viagem de Jacques Riffault ao norte do Brasil, em 1594 e principalmente ao interesse do náufrago Charles des Vaux em convencer o rei da França, Henrique IV, em empreender projeto de colonização na Ilha dos Tupinambás. Além destes, Daniel de la Touche, Senhor de la Ravardière e François de Razilly, Senhor de Aumelles se interessaram e deram continuidade ao projeto, associando-se à vários nobres.

Antes da partida dessa empresa para o Maranhão, ainda no porto de Cancale, na França, os principais integrantes, resolveram fazer votos de protesto e promessa para que tudo desse certo. Os comandantes estavam imbuídos de não cometerem os mesmos erros de desunião que contribuíram para o fracasso da experiência francesa anterior, em terras do Brasil meridional, a França Antártica de Villegagnon.

 Previamente selaram acordo para o sucesso da expedição. Segundo as diretrizes contidas em tal documento, o êxito da colônia francesa no Maranhão dependia de três ações essenciais: obediência aos chefes, união entre os franceses e o bom governo entre os índios. Nestes termos, estava firmado em 1.º de março de 1612, o protesto da companhia, para o bom estabelecimento da colônia.
Os franceses estavam convictos que o sucesso do empreendimento só lograria êxito se houvesse uma convivência pacífica, não só entre eles, mas também entre nativos e europeus. Para os conquistadores gauleses em terras americanas o bom tratamento dispensado aos indígenas era estratégia imprescindível para captar apoio, tanto para os objetivos econômicos quanto bélicos. Tinham consciência que sem a ajuda dos índios Tupinambás a possibilidade de implantação de uma colônia no Maranhão ficava inviável, para isso buscavam sempre o bom trato com essas nações.
Maria de Médicis
 Havia uma exigência real que o catolicismo deveria ser a única religião a ser implantada nesse novo estabelecimento. A expansão do catolicismo em terras do Novo Mundo é também um dos objetivos da expedição, seja para dar um “colorido” religioso, conforme revelação de Razilly, contida no manuscrito do anônimo de Turim ou uma manobra política da Rainha Regente, Maria de Médicis, buscando se legitimar junto ao Papa.
A preocupação da Rainha em enfatizar que não deveria haver outra religião se não a católica nas novas terras a serem conquistadas no norte do Brasil, se explica também pela duplicidade de comando e a diferença religiosa entre Razilly e Ravardière, católico e huguenote, respectivamente.
João Lisboa, em seu Jornal de Tímon, sugere que o estabelecimento francês no Maranhão pudesse servir de abrigo para exilados calvinistas:

Não é impossível também que Ravardière, sectário de Calvino como o mais da gente da expedição, traçasse em ânimo dispor nas novas conquistas um abrigo seguro em que pudesse os seus correligionários acolher-se, para diante, das perseguições, a que então andavam continuamente expostos no próprio país. 
     
A especulação de Lisboa faz sentido, pois um dos líderes era adepto do calvinismo. De repente, no íntimo de Ravardière e dos demais huguenotes que se deslocaram até o Maranhão, existisse a idéia que a pretendida França Equinocial pudesse se tornar um refúgio dos calvinistas na América.
No entanto, o que demonstra os documentos existentes sobre esse período é que a expedição francesa no Maranhão foi do ponto de vista oficial uma empresa imperativamente católica e a religião que deveria predominar era de fato o catolicismo, porém, sabe-se que nesse estabelecimento coabitaram católicos e protestantes.  
Franceses e índios
fixam a cruz na ilha do Maranhão
(Lèonard Galtier)
Como deve ter sido a convivência entre comandantes e comandados? Entre católicos e huguenotes? Conviveram estes franceses em plena harmonia na França Equinocial? Segundo Bernardo Pereira de Berredo - autor de “Anais Históricos do Estado do Maranhão” - não, este, insinua possíveis dissídios na incipiente colônia, possivelmente de origem religiosa. O autor chama a atenção para o silêncio de Claude d’Abbeville, acerca dessas prováveis divergências religiosas, classificando-o de “culpável política”. Para Berredo, a diversidade de religião entre os colonos era motivo de crescente discórdia.
Embora Abbeville em sua crônica, “História da Missão dos Padres Capuchinho na Ilha do Maranhão”, mantenha certa posição de silêncio sobre possíveis divergências, por outro lado, em alguns momentos, o capuchinho francês deixa escapar indícios da existência de divergências entre seus compatriotas, quando por exemplo, antes do embarque para o Maranhão, ainda na Bretanha, atribui ao demônio um caso de rivalidades entre os tripulantes, gerando assim facções contrárias: “[...] não deixou [o diabo] de perseguir-nos, revolvendo para isso céus e terras, semeando a maldita intriga da divisão no coração dos franceses, para esmorecer o sr. Rasilly”.
Há também evidências dessas divergências nos depoimentos de trabalhadores artífices que vieram ao Maranhão na nau Regente comandada pelo Capitão Du Pratz, em 1614 e que foram aprisionados pelos portugueses durante a Batalha de Guaxenduba. Nesses depoimentos, prestados diante de Jerônimo de Albuquerque e Diogo de Campos Moreno, não se percebe que na colônia prevalecesse um clima de harmonia entre governantes e governados, ao contrário, a insatisfação por parte dos colonos parecia generalizada. Sobre isso, ressalta Sérgio Buarque de Hollanda (2004): 
Muitos desses prisioneiros mostraram claramente seu despeito contra Daniel de la Touche, o qual deveria ter regressado à França na mesma nau Regente, ou até antes da chegada desta, e não o fizera, conduzindo todos a uma desastrosa peleja. Um desses homens, que tinha vindo da Europa com a esposa, diz do Senhor de la Ravardière que “se intitula lugar-tenente general do rei da França” como se não fosse.  
Embora haja fortes indícios que a convivência entre os franceses não fora tão harmônica como desejara Maria de Médicis, não podemos afirmar, entretanto, que tivesse havido algum tipo de desentendimento sério a ponto que “a recíproca tolerância entre os chefes” não conseguisse contornar.
François de Razilly  (Museu do Louvre)
 Não há dúvida que a pluralidade de chefia gerou um mal estar na França Equinocial, tanto em relação aos indígenas como em relação aos franceses, no entanto, deve-se admitir que a forma como os chefes resolveram essa questão, deixa transparecer a vontade mútua de Ravardière e Razilly de solucionar o impasse, sem colocar em risco a segurança do projeto de colonização. A França Antártica era uma experiência que eles não queriam repetir.
Ficou acertado entre os dois comandantes que La Ravardière permaneceria no comando da expedição só até a chegada de Razilly, que teria ido à França em busca de ajuda para continuidade do projeto. La Ravardière se mostra favorável em consentir que todo o poder passasse finalmente às mãos de Razilly, dando demonstração que ao contrário de possíveis atritos entre ambos, havia um relacionamento sempre tolerante.

La Ravardière ( Busto idealizado)
 Mesmo tendo havido tolerância entre os chefes da colônia, como podemos explicar a capacidade de desprendimento de um La Ravardière em aceitar renunciar a sua chefia, em favor de Razilly e segundo ele próprio, “em benefício da colônia, que ganharia com a existência de um único chefe, o Senhor de Rasilly.”
Como poderia La Ravardière abandonar um projeto de colonização, tendo sido ele o primeiro a ser convidado por Sua Majestade de empreender tal estabelecimento?
Para Sérgio Buarque de Hollanda, a explicação do gesto de renúncia de La Ravardière, reside no fato de que Razilly, apesar de nomeado loco tenente general das Índias Ocidentais posteriormente a Ravardière e por ter sido convidado por este a se associar a essa empresa, de fato, não ocuparia lugar secundário nos trabalhos de preparação e manutenção na França Equinocial. Seu papel teria sido muito mais importante do que aparentemente tem sido tradicionalmente demonstrado pelos historiadores.
Foi a morte de Henrique IV que provocou a modificação no projeto de ocupação e colonização do Maranhão. Sem querer arcar com todos os custos da expedição como prometera seu falecido marido, a Rainha Regente, Maria de Médicis não deixara alternativa a La Ravardière se não buscar apoio junto a nobres influentes da corte.
A modificação do projeto original, com a entrada de Razilly, provocara a duplicidade de chefia, assim como o papel imprescindível que ele ocupara para viabilização, manutenção e administração do estabelecimento francês no Maranhão.
Favorecido por uma conjuntura existente na França, onde ainda havia divergências entre reformados e católicos, Razilly, merecedor da credibilidade dos católicos, ao contrário de La Ravardière, ligado aos protestantes, reunia as melhores condições para obter apoio e patrocínio para o projeto de colonização do norte do Brasil e aprovação da Coroa francesa. São essas condições favoráveis que reunia o Senhor de Razilly que o respaldava para que pudesse vir a assumir definitivamente posição de liderança única na França Equinocial. Portanto, uma explicação possível e plausível para renúncia sem contestação de Daniel de la Touche ao comando da colônia francesa na Ilha do Maranhão.



* EUGES SILVA DE LIMA, É PROFESSOR DE HISTÓRIA DAS REDES PÚBLICAS ESTADUAL DO MARANHÃO E MUNICIPAL DE SÃO LUÍS, ESPECIALISTA EM TEORIA E METODOLOGIA PARA O ENSINO DA HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO(UEMA) E VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFCO DO MARANHÃO (IHGM).