quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Entrevista com Mary Del Priore

Entrevista ao jornal  Estado do Maranhão (08/12):

ESTADO DO MARANHÃO - Para você como se dá a relação entre história e literatura?


MARY DEL PRIORE - Alguém já definiu a história como "um romance de verdade". Ou um romance com notas de rodapé. De fato, quando combinamos dramas pessoais com o panorama geral da história do país, temos um excelente resultado. Aproximamos o leitor do passado, mas, o fazemos através de uma escrita ...
que o convida a olhar de forma diferente: atento aos detalhes, curioso dos cenários, sensível aos personagens. Enfim, por meio de uma descrição quase cinematográfica, conseguimos transportá-lo a outra época. A linguagem é o tapete mágico capaz de promover esse deslocamento. Tenho muito cuidado com as palavras e procuro recriar os mundos que perdemos. E todo esse esforço, apoiado na pesquisa de arquivos e em documentos históricos, resulta em novas páginas e novas informações sobre o que nos parecia tão velho e conhecido.


EM - Quais elementos um livro deve conter para “prender” o leitor?

MDP - O primeiro deles é a paixão do autor pelo objeto. Acho impossível escrever bons livros sem estar comprometido com o assunto, com os personagens e com a narrativa. O segundo, é criar condições para que o leitor se sinta transportado no tempo. Para isso, é preciso um grande conhecimento dos detalhes, da vida cotidiana, dos cenários e paisagens que cercaram nosso antepassados. Não basta narrar fatos, magros e descarnados. É preciso que o leitor se sinta ali, como uma espécie de espectador da história. E finalmente, penso que é preciso despir os personagens de sua aura mítica e vê-los como seres de carne e osso, humanos nas suas glórias e desgraças. Quando D. Pedro deixa de ser visto como um jovem imperador no alto do cavalo branco, para ser mostrado como um simples enamorado que escreve bilhetes apaixonados á sua amada, compreendemos melhor o homem que ele foi. Compartilhar essa experiência é fundamental.

EM - Fale sobre seu processo de escrita.

MDP - Sou extremamente organizada e rígida com a disciplina. Acordo muito cedo, pois moro na roça e logo depois do café, já estou no computador. Gosto de escrever nas manhãs e uso às tardes para organizar o material previamente pesquisado e reler a bibliografia pertinente ao assunto estudado. Diferentemente de muita gente para quem escrever é um esforço, adoro o trabalho da escrita que faço com facilidade e prazer.

EM - Como será sua participação no Festival Geia de Literatura?

MDP -  Fui convidada a apresentar meus trabalhos a estudantes do ensino fundamental e médio. Terei o maior prazer em lhes falar sobre história e de como ela tem impacto na identidade das pessoas, assim como despertar-lhes para a importância da memória e da preservação num estado onde - como dizem os historiadores franceses - tudo é história! O mais importante é que tenho um livro sobre história das Crianças no Brasil e vou aproveitar para contar-lhes como foi dura e difícil a vida de seus antepassados.

EM - Em Histórias Íntimas, você, de certa forma, traça um paralelo entre o machismo e o erotismo, dando destaque à sexualidade feminina, ao debater que fora de casa elas querem ser independentes, mas em casa preferem ser princesas. Isso não seria um paradoxo? E o que justificaria esse comportamento feminino?

MDP - O fio condutor do livro é a análise do que chamo de "a dupla cara do brasileiro": na rua liberal, em casa, machista, homofóbico e racista. Mostro que, ao longo de quinhentos anos, construímos essa duplicidade e que a grande luta dos tempos atuais é combatê-la. As mulheres são, historicamente, as portadores destes preconceitos. São elas que gostam de ser chamadas de tudo o que é comestível (gostosa e docinho!), não deixam os maridos lavar a louça e se a namorada do filho lhe dá o fora, a culpa é dela que "não presta". Esses comportamentos machistas são reproduzidos na intimidade do lar, contaminando nosso filhos que os reproduzem com suas próprias mulheres. O grande desafio hoje é evitar a duplicidade e combater a intolerância frente ao diferente.

EM - Festival Geia tem uma preocupação em estimular a leitura pelos mais jovens, crianças e adolescentes, mas seus livros não parecem muito indicado para este público, ainda que em Histórias Íntimas você diga que a Barbie, a boneca dos sonhos de quase todas as meninas, na verdade “as ensina a serem putas”. Como falar de sexualidade com crianças e adolescentes e por que a aparentemente inocente Barbie acaba desempenhando este papel?

MDP - Reduzir Histórias Íntimas a uma frase é lamentável. Mas vamos a ela. Desde tempos imemoriais, as bonecas tem servido para preparar as mulheres para a maternidade e a vida do lar: mamadeiras, fraldas, roupinhas, todo o universo do feminino e do papel de mãe girava em torno das bonecas. Os tempos mudaram. Mas desta mudança, a Barbie só representa um lado: o do consumo. Não basta possuir a boneca que não tem corpo de bebê, mas de mulher. É preciso acrescentar a parafernália toda: a cozinha da Barbie, o carro da Barbie, as roupas da Barbie, e por que não, o marido da Barbie. Tudo é comprado. Tudo é "ter". Nada se aprende e muito menos que as mulheres fizeram grandes mudanças no sentido de caminhar com as próprias pernas, em busca de auto-suficiência. Pior é o protótipo da Barbie: loura, peituda, de pernas longas. Completamente diferente das meninas brasileiras, morenas, mulatas e negras. Pergunto-me como fica a auto-estima de uma delas, brincando com uma boneca que é como elas nunca serão! Quanto a estimular a leitura dos jovens, não será falando de sexo que vou fazê-lo. Mas, mostrando que o livro, qualquer um deles, é o melhor amigo que se possa ter. Fiel, sempre aberto a uma conversa, a uma viagem, a um aprendizado. Que ler é fundamental para sabermos quem somos e escolhermos nosso lugar no mundo.

EM - “A Carne e o Sangue” retrata a vida particular da realeza brasileira do século XIX, focando no triângulo amoroso vivido pela imperatriz Maria Leopoldina, seu marido, o imperador Dom Pedro I e a amante dele, Domitila, que ganhou o título de Marquesa de Santos. De que forma revelar essas histórias íntimas de personalidades históricas do Brasil pode aumentar o conhecimento que a população tem da formação histórico-social brasileira?

MDP - Ao percorrer o livro, os leitores se darão conta que o triângulo amoroso ocorreu numa das épocas mais atribuladas de nossa história. Que as paixões vividas por D. Pedro extravasaram a alcova, refletindo-se na vida política e social do país. Que a confusão entre vida pública e vida privada - tão atual - sempre esteve presente em nossa história. Que os três personagens principais foram figuras centrais de um processo de Independência com forte teor conservador, garantido por meio de um pacto com as elites. E mais interessante: que a cidade, e o povo carioca, participaram ativamente da ascensão e queda do imperador, por meio de pasquins, de grafites pelos muros da cidade e de ironias.

EM - Se a Proclamação da República não tivesse alterado os rumos da história do Brasil, o país teria um neto de Dom Pedro II como terceiro imperador. É essa a história que é retratada em O Príncipe Maldito, um traço da história nacional que o grande público desconhece, possivelmente. Por que a história oficial, contada nos livros de história das escolas, quase nunca corresponde à história real?

MDP - Penso que faltam pessoas interessadas na transmissão da história do Brasil para as escolas. A Universidade tem realizado trabalhos fantásticos que não extravasam seus muros. Meu primeiro livro infanto-juvenil vai sair em setembro, pela editora Planeta. Chama-se "A descoberta do Novo Mundo". nele utilizo a história real de crianças que cruzaram o oceano Atlântico como grumetes, nos navios de carreira, e, através de seus olhos, conto o que foi a chegada à Terra de Santa Cruz. Será o primeiro de uma série. Digo sempre que ser historiador é ser um profissional do entusiasmo. Meu objetivo é fazer com que todos se interessem por historia e entendam a importância, mas também, o prazer da disciplina.

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