O sonho francês em estabelecer uma colônia nas terras do Maranhão, remonta a viagem de Jacques Riffault ao norte do Brasil, em 1594 e principalmente ao interesse do náufrago Charles des Vaux em convencer o rei da França, Henrique IV, em empreender projeto de colonização na Ilha dos Tupinambás. Além destes, Daniel de la Touche, Senhor de la Ravardière e François de Razilly, Senhor de Aumelles se interessaram e deram continuidade ao projeto, associando-se à vários nobres.
Antes da partida dessa empresa para o Maranhão, ainda no porto de Cancale, na França, os principais integrantes, resolveram fazer votos de protesto e promessa para que tudo desse certo. Os comandantes estavam imbuídos de não cometerem os mesmos erros de desunião que contribuíram para o fracasso da experiência francesa anterior, em terras do Brasil meridional, a França Antártica de Villegagnon.
Previamente selaram acordo para o sucesso da expedição. Segundo as diretrizes contidas em tal documento, o êxito da colônia francesa no Maranhão dependia de três ações essenciais: obediência aos chefes, união entre os franceses e o bom governo entre os índios. Nestes termos, estava firmado em 1.º de março de 1612, o protesto da companhia, para o bom estabelecimento da colônia.
Os franceses estavam convictos que o sucesso do empreendimento só lograria êxito se houvesse uma convivência pacífica, não só entre eles, mas também entre nativos e europeus. Para os conquistadores gauleses em terras americanas o bom tratamento dispensado aos indígenas era estratégia imprescindível para captar apoio, tanto para os objetivos econômicos quanto bélicos. Tinham consciência que sem a ajuda dos índios Tupinambás a possibilidade de implantação de uma colônia no Maranhão ficava inviável, para isso buscavam sempre o bom trato com essas nações.
Maria de Médicis |
Havia uma exigência real que o catolicismo deveria ser a única religião a ser implantada nesse novo estabelecimento. A expansão do catolicismo em terras do Novo Mundo é também um dos objetivos da expedição, seja para dar um “colorido” religioso, conforme revelação de Razilly, contida no manuscrito do anônimo de Turim ou uma manobra política da Rainha Regente, Maria de Médicis, buscando se legitimar junto ao Papa.
A preocupação da Rainha em enfatizar que não deveria haver outra religião se não a católica nas novas terras a serem conquistadas no norte do Brasil, se explica também pela duplicidade de comando e a diferença religiosa entre Razilly e Ravardière, católico e huguenote, respectivamente.
João Lisboa, em seu Jornal de Tímon, sugere que o estabelecimento francês no Maranhão pudesse servir de abrigo para exilados calvinistas:
Não é impossível também que Ravardière, sectário de Calvino como o mais da gente da expedição, traçasse em ânimo dispor nas novas conquistas um abrigo seguro em que pudesse os seus correligionários acolher-se, para diante, das perseguições, a que então andavam continuamente expostos no próprio país.
A especulação de Lisboa faz sentido, pois um dos líderes era adepto do calvinismo. De repente, no íntimo de Ravardière e dos demais huguenotes que se deslocaram até o Maranhão, existisse a idéia que a pretendida França Equinocial pudesse se tornar um refúgio dos calvinistas na América.
No entanto, o que demonstra os documentos existentes sobre esse período é que a expedição francesa no Maranhão foi do ponto de vista oficial uma empresa imperativamente católica e a religião que deveria predominar era de fato o catolicismo, porém, sabe-se que nesse estabelecimento coabitaram católicos e protestantes.
Franceses e índios fixam a cruz na ilha do Maranhão (Lèonard Galtier) |
Embora Abbeville em sua crônica, “História da Missão dos Padres Capuchinho na Ilha do Maranhão”, mantenha certa posição de silêncio sobre possíveis divergências, por outro lado, em alguns momentos, o capuchinho francês deixa escapar indícios da existência de divergências entre seus compatriotas, quando por exemplo, antes do embarque para o Maranhão, ainda na Bretanha, atribui ao demônio um caso de rivalidades entre os tripulantes, gerando assim facções contrárias: “[...] não deixou [o diabo] de perseguir-nos, revolvendo para isso céus e terras, semeando a maldita intriga da divisão no coração dos franceses, para esmorecer o sr. Rasilly”.
Há também evidências dessas divergências nos depoimentos de trabalhadores artífices que vieram ao Maranhão na nau Regente comandada pelo Capitão Du Pratz, em 1614 e que foram aprisionados pelos portugueses durante a Batalha de Guaxenduba. Nesses depoimentos, prestados diante de Jerônimo de Albuquerque e Diogo de Campos Moreno, não se percebe que na colônia prevalecesse um clima de harmonia entre governantes e governados, ao contrário, a insatisfação por parte dos colonos parecia generalizada. Sobre isso, ressalta Sérgio Buarque de Hollanda (2004):
Muitos desses prisioneiros mostraram claramente seu despeito contra Daniel de la Touche, o qual deveria ter regressado à França na mesma nau Regente, ou até antes da chegada desta, e não o fizera, conduzindo todos a uma desastrosa peleja. Um desses homens, que tinha vindo da Europa com a esposa, diz do Senhor de la Ravardière que “se intitula lugar-tenente general do rei da França” como se não fosse.
Embora haja fortes indícios que a convivência entre os franceses não fora tão harmônica como desejara Maria de Médicis, não podemos afirmar, entretanto, que tivesse havido algum tipo de desentendimento sério a ponto que “a recíproca tolerância entre os chefes” não conseguisse contornar.
François de Razilly (Museu do Louvre) |
Ficou acertado entre os dois comandantes que La Ravardière permaneceria no comando da expedição só até a chegada de Razilly, que teria ido à França em busca de ajuda para continuidade do projeto. La Ravardière se mostra favorável em consentir que todo o poder passasse finalmente às mãos de Razilly, dando demonstração que ao contrário de possíveis atritos entre ambos, havia um relacionamento sempre tolerante.
Mesmo tendo havido tolerância entre os chefes da colônia, como podemos explicar a capacidade de desprendimento de um La Ravardière em aceitar renunciar a sua chefia, em favor de Razilly e segundo ele próprio, “em benefício da colônia, que ganharia com a existência de um único chefe, o Senhor de Rasilly.”
La Ravardière ( Busto idealizado) |
Como poderia La Ravardière abandonar um projeto de colonização, tendo sido ele o primeiro a ser convidado por Sua Majestade de empreender tal estabelecimento?
Para Sérgio Buarque de Hollanda, a explicação do gesto de renúncia de La Ravardière, reside no fato de que Razilly, apesar de nomeado loco tenente general das Índias Ocidentais posteriormente a Ravardière e por ter sido convidado por este a se associar a essa empresa, de fato, não ocuparia lugar secundário nos trabalhos de preparação e manutenção na França Equinocial. Seu papel teria sido muito mais importante do que aparentemente tem sido tradicionalmente demonstrado pelos historiadores.
Foi a morte de Henrique IV que provocou a modificação no projeto de ocupação e colonização do Maranhão. Sem querer arcar com todos os custos da expedição como prometera seu falecido marido, a Rainha Regente, Maria de Médicis não deixara alternativa a La Ravardière se não buscar apoio junto a nobres influentes da corte.
A modificação do projeto original, com a entrada de Razilly, provocara a duplicidade de chefia, assim como o papel imprescindível que ele ocupara para viabilização, manutenção e administração do estabelecimento francês no Maranhão.
Favorecido por uma conjuntura existente na França, onde ainda havia divergências entre reformados e católicos, Razilly, merecedor da credibilidade dos católicos, ao contrário de La Ravardière, ligado aos protestantes, reunia as melhores condições para obter apoio e patrocínio para o projeto de colonização do norte do Brasil e aprovação da Coroa francesa. São essas condições favoráveis que reunia o Senhor de Razilly que o respaldava para que pudesse vir a assumir definitivamente posição de liderança única na França Equinocial. Portanto, uma explicação possível e plausível para renúncia sem contestação de Daniel de la Touche ao comando da colônia francesa na Ilha do Maranhão.
* EUGES SILVA DE LIMA, É PROFESSOR DE HISTÓRIA DAS REDES PÚBLICAS ESTADUAL DO MARANHÃO E MUNICIPAL DE SÃO LUÍS, ESPECIALISTA EM TEORIA E METODOLOGIA PARA O ENSINO DA HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO(UEMA) E VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFCO DO MARANHÃO (IHGM).
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