Jornalista Julio Lamas publica texto sobre a casa de Aluísio Azevedo no site Planeta Sustentável
por Julio Lamas
O
centro histórico de São Luís abriga cerca de três mil imóveis tombados, que
valem à capital do Maranhão o epíteto de “Cidades dos Azulejos” *. Declarado Patrimônio Cultural da Humanidade
pela Unesco há 17 anos, seus prédios e casas formam uma narrativa concreta e
abrangente de diversos estilos da arquitetura colonial portuguesa entre os
séculos XVIII e XIX. Dado seu tamanho e valor, esse legado constitui um desafio
diário para os órgãos estaduais e federais de conservação como o Iphan, que
lutam ou contra a ação do tempo nas estruturas ou contra a falta de
investimentos para sua manutenção. Mas mesmo com o empenho em preservar,
algumas construções continuam abandonadas ou mal aproveitadas, enquanto outras
simplesmente são vítimas de algo que só pode ser descrito como um misto de
miopia histórica da especulação imobiliária no Brasil com um planejamento urbano
incapaz de enxergar ótimas oportunidades para os espaços vazios nas cidades.
Uma
demonstração disso, e quase irônica de tão infeliz, é o futuro reservado para o
sobrado que serviu de moradia e escritório ao escritor Aluísio Azevedo
(1857-1913), autor de livros como “O Mulato”, “O Cortiço” e “Casa de pensão”,
que abriram caminhos para o Naturalismo brasileiro e desvendam literariamente a
dinâmica social da expansão das cidades no país durante o século XIX. Esquecida
e depredada por quase uma década, quando foi vendida pelo Sindicato dos
Urbanitários de São Luís, a casa do fundador da cadeira número 4 da Academia
Brasileira de Letras hoje corre o risco de virar um estacionamento, segundo uma
denúncia do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM) feita em março
deste ano. E o pior, de acordo com a entidade, é que o imóvel é apenas um entre
vários do distrito histórico que tiveram ou aguardam o mesmo destino. “A
prática vem ocorrendo sistematicamente nos últimos anos no centro de São Luís,
onde casarões, moradas inteiras e meias moradas de propriedade de particulares
vão sendo demolidas ou desfiguradas para dar lugar a estacionamentos. E nada é
feito pelos órgãos responsáveis”, relata Euges Lima, professor de história e
vice-presidente do IHGM.
Contudo,
sem entrar em méritos dos danos que os estacionamentos já causam à mobilidade e
à qualidade de vida nas cidades, essa situação se torna ainda mais frustrante
quando se reconhece a vocação literária de São Luís e o peso que possui na
formação de nossas Letras. Nos últimos três séculos, a cidade foi morada e
inspiração para escritores como Artur Azevedo (irmão de Aluísio), Coelho Neto,
Gonçalves Dias, Joaquim de Sousa Andrade e, inclusive, Ferreira Gullar, nosso
maior poeta vivo. Por que a casa de Aluísio Azevedo não poderia ser um centro
de formação de escritores, uma oficina pública de escrita criativa ou uma casa
para autores jovens sem ter onde morar? Por que encher as ruas de
estacionamentos e não de inteligência artística?
A
bem dizer, não faltam exemplos de cidades globais, onde uma visão mais
interessante deu lugar à “miopia urbana” dos espaços abandonados. Em Paris, o
prédio do 59 Rivoli, próximo ao Louvre, foi negligenciado pelo Estado francês e
seus proprietários por 15 anos até ser ocupado e reformado ilegalmente, em
2000, sob a liderança de um grupo de artistas plásticos ativistas, o trio KGB
(Kalex, Gaspard e Bruno), que propunham reaproveitar o lugar como residência e
ateliê. A intervenção foi determinante para revitalizar o imóvel, conhecido
também como coletivo “Chez Robert, eléctron libre” (Casa de Robert, elétron
livre), onde estão mais de 30 ateliês, dos quais 10 estão abertos como
residência de intercâmbio para jovens talentos. As exposições e a programação
cultural desenvolvida por seus criadores tornaram o 59 Rivoli o terceiro
endereço dedicado à arte contemporânea mais visitado de Paris na época de sua
constituição, recebendo um público de 40 mil pessoas anualmente, de acordo com
a Secretaria de Cultura da cidade. O sucesso do empreendimento, claro, abriu os
olhos do governo local, que antes via a ação como invasão, para a oportunidade.
Em 2006, a prefeitura comprou o edifício e realocou os ocupantes para realizar
reformas estruturais e entregá-lo novamente para os artistas três anos depois.
Hoje, é um dos dez locais mais visitados da “Cidade Luz”, onde a concorrência,
vamos combinar, não é fácil. Notoriamente, também Berlim, na Alemanha, tem se
destacado em iniciativas como essa para se tornar “a cidade mais legal do
mundo” no século XXI**.
E
curiosamente, ao mesmo tempo em que São Luís se priva de um rico pedaço de seu
passado e de um futuro literário mais brilhante, Detroit, nos EUA, tem um
projeto que propõe exatamente o contrário: trazer escritores de todo o mundo
para viver em seus prédios e casas desocupadas. Desde 2012, a ong Write a House
(“Escreva uma Casa”) compra e reforma imóveis por meio de doações para depois
entregá-los aos autores que se candidatarem a morar na cidade.
O
objetivo é lidar com uma questão central para Detroit atualmente: o déficit de
moradores. Entre 2000 e 2010, a cidade viu sua população encolher 25%, de 1,2
milhão de habitantes para 700 mil. A grave crise econômica enfrentada pela
cidade desde o final da década de 1980, por conta da saída das grandes
montadoras de veículos como a GM e a Chrysler, elevou índices de abandonos e
falências. Em consequência, o cenário é de uma cidade vazia, onde há mais de
100 mil lotes desocupados e 45 mil imóveis abandonados, quase um quarto das
habitações disponíveis.
Detroit
declarou sua falência em 2013, mas tenta com esforço se reinventar de diversas
maneiras. Uma delas tem sido pela
criatividade. “Eu penso que projetos como o Write a House divulgam para fora
grandes mensagens: criatividade é importante, criatividade precisa de suporte e
Detroit é um lugar que, apesar de todos os seus desafios, abraça e apoia a
literatura”, explica o escritor Toby Barlow, criador do programa, ressaltando
que no meio do processo de reformas das casas jovens sem emprego ainda tem a oportunidade
de aprender técnicas de construção, arquitetura e carpintaria.
Pois
bem, se São Luís não quer ser um espaço para os futuros Aluísios Azevedos,
vamos levá-los para Detroit?
*os
azulejos portugueses nas fachadas das casas do centro histórico de São Luís
respondiam a duas finalidades: embelezar, obviamente, e também servir de
isolante térmico contra o forte calor equatorial.
**a
ocupação de imóveis abandonados por artistas plásticos também é conhecida pelo
termo “Squarts”, junção da palavra inglesa ‘squat’, que faz referência à
invasão de imóveis desocupados, e da palavra “arte”.
Foto
1: Divulgação / Write a House
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