O
século XX foi um período fértil para construção da idéia de uma São Luís
fundada por franceses, época onde essa versão se gesta e se desenvolve, além de
eventualmente ter sido questionada. Em fins do século passado e início deste,
verifica-se o momento de seu maior questionamento. É precisamente nessa virada
de século que os mitos relativos à fundação da cidade ficam mais expostos e
sujeitos a novas leituras.
Barbosa
de Godóis, em sua História do Maranhão para uso dos alunos da Escola Normal,
publicado em 1904, obra panorâmica sobre a história do Estado, que apesar da
finalidade didática na época, foi visto depois como uma importante fonte de
pesquisa por várias gerações de historiadores, aborda assim o tema da fundação
de São Luís:
De posse do Governo do Maranhão, Jerônimo de Albuquerque, cumprindo as ordens que recebera da Corte de
Madri, tratou com solicitude da fundação da cidade [grifo nosso], que pôs
sob a proteção da Senhora da Vitória, dando-lhe todavia o nome de São Luís, que
os franceses haviam posto ao seu forte.
Para o autor, quem é
considerado o fundador da cidade não é o fidalgo Daniel de La Touche, senhor de
La Ravardière, mas sim o mestiço pernambucano, Jerônimo de Albuquerque, filho
de índia mais pai português. Em seu livro não demonstra qualquer sinal de
controvérsia ou dúvida acerca da fundação de São Luís, para ele é ponto
pacífico a origem lusitana da cidade. Evocando os frades cronistas franceses
que aqui estiveram em 1612, diz o seguinte: “Cláudio d’Abbeville, descrevendo
que o lugar em que os franceses construíram o forte, mais tarde nominado São
Luís, é tão preciso nas suas palavras, que admira como, em face do seu
testemunho presencial, haja quem, conhecendo a ilha de São Luís, alimente
dúvidas a respeito da posição escolhida pelos invasores para a montagem de sua
fortaleza.” (GODÓIS, 2008). Observa-se aí, portanto, que os franceses são
vistos pelo autor, não como fundadores, mas como meros invasores.
A
cerimônia do 8 de setembro de 1612, entre franceses e tupinambás, na ilha de
Upaon- Açu, foi por Barbosa de Godóis, descrita assim:
[...] fizeram construir uma grande cruz de
madeira, para ser em procissão transportada ao forte, onde deveria ser
levantada como símbolo da tomada de
posse do território [grifo nosso], no interesse da religião do Crucificado,
e da aliança entre indígenas e a mesma religião.
Veja
que na visão de Godóis, a cerimônia do 8 de setembro não é vista como auto de
fundação de cidade, como entendeu o historiador Ribeiro do Amaral em 1911, mas
como símbolo da tomada de posse do território pelos franceses em nome do
cristianismo. Em seu livro “Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo
Mundo”, a historiadora inglesa Patrícia Seed, corrobora com a idéia de Godóis.
Faz uma acurada análise de todas as cerimônias das principais metrópoles
européias ao desembarcarem na América entre 1492 e 1649. No caso do Maranhão,
ela se refere assim à procissão do 8 de setembro de 1612:
Após quase seis semanas dessas demonstrações
de aprovação nativa, os franceses encenam o primeiro de dois rituais de posse política [grifo nosso]. Como
naquela miniatura de cerimônia de chegada na pequena ilha de Sainte Anne, os
elementos centrais foram uma procissão e a colocação de uma cruz.
É
importante ressaltar que a visão aqui explicitada de Barbosa de Godóis, em
1904, sobre a fundação de São Luís, não representa uma leitura nova sobre o
tema, ao contrário, expressa a visão tradicional, desenvolvida desde os séculos
XVIII e XIX, portanto, já consolidada. Era a visão corrente até esse início de
século XX.
A
mudança da visão tradicional a respeito da fundação da cidade passa a ganhar
outra versão a partir dos artigos e depois do livro “Fundação do Maranhão”,
escrito pelo famoso historiador maranhense, Ribeiro do Amaral, respectivamente
entre os anos de 1911 e 1912. É esse autor que muda completamente a tradição
historiográfica sobre a fundação de São Luís que vinha sendo aceita até 1904.
Em
1911, Ribeiro do Amaral, numa coluna do Diário Oficial, publicada às
sextas-feiras, intitulada “O Maranhão Histórico”, onde discorria sobre temas
relativos à história do Estado, escreveu dois artigos, desconsiderando toda a
tradição historiográfica sobre a fundação da cidade, suscitando uma nova
versão. No primeiro artigo, escrito em 17 de novembro de 1911, comparando as
ocupações holandesas e francesas, diz o seguinte: “Os franceses levantaram, os
holandeses derrubaram; os franceses deram começo à fundação da cidade e à construção
dos primeiros edifícios que aqui houve, alguns dos quais ainda hoje duram.”
No
segundo, escrito em 24 de novembro de 1911, com o título “Fundação do Maranhão”,
portanto, bastante sugestivo, o autor pormenoriza mais os principais momentos
que compuseram a chegada e a instalação dos franceses em terras tupinambás e
principalmente procede a uma releitura da cerimônia do 8 de setembro descrita
por Claude D’Abbeville:
São decorridos 299 anos das cenas que, aqui, ligeiramente
ficam descritas, mas ao percorrer ainda hoje aquelas páginas de Cláudio de
Abbeville na sua História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão,
como que nos parece vê-las renovarem-se aos nossos olhos, tão viva e tão
verdadeira que pode e deve ser considerada como o auto da fundação da cidade.
Segundo
Lacroix, é em 1912 com o livro “Fundação do Maranhão” que os fundamentos da
nova interpretação de Ribeira do Amaral são lançados. Embora essa obra
represente de certa forma um marco para essa nova interpretação, escrita com o
objetivo de comemorar as efemérides do suposto terceiro centenário da cidade, a
rigor, a gestação dessa nova interpretação nasce um pouco antes, não com a
publicação do livro “O Estado do Maranhão em 1896” como ela afirmara, pois ali
Ribeiro do Amaral se refere à povoação e colônia e não à cidade, abordagens,
portanto, diferentes.
É
precisamente em 1911, como foi demonstrado, a partir desses artigos
antecessores ao livro “Fundação do Maranhão” que o autor começa a gestar de
fato, sua releitura da descrição de Abbeville do 8 de setembro, agora não mais
como um ato de posse e afirmação da ocupação francesa nas terras americanas
tão-somente, mas na nova perspectiva de Amaral: dia, mês e ano do nascimento da
cidade. Uma “renovada” visão das cerimônias e seus (re)significados, sendo
agora os franceses, vistos como pais fundadores e não como invasores, como
constava na historiografia anterior.
Verifica-se,
portanto, a partir daí, o surgimento e a tentativa de estabelecimento de uma
nova tradição para a cidade, a comemoração de sua fundação – algo sem
precedentes - agora não mais de origem portuguesa, mas de origem francesa, que
Ribeiro do Amaral considerava já próximo de completar trezentos anos. Nota-se
aí, um processo iniciado de invenção de uma tradição, forjada recentemente pelo
autor. Utilizamos o conceito de “tradição
inventada” que se entende como um conjunto de práticas, normalmente reguladas
por regras tácitas, de natureza ritual ou simbólica, que visam inculcar certos
valores e normas, através da repetição.
A
mudança de versão sobre a fundação da cidade, engendrada por Ribeiro do Amaral,
não há dúvida, encontrou eco nas gerações seguintes de historiadores
maranhenses, reafirmando-se assim o mito da fundação francesa, sem contestar,
embora, observam-se de forma esporádica, inseguranças; é o caso de Crisóstomo
de Sousa nos anos de 1940. “Ele confessa estar, no assunto perdido num mar de
dúvidas, com a bitácula apagada. Não sabe se São Luís foi fundada a 8 de
setembro de 1612, ignora se o fundador da cidade foi Francisco de Rasilly ou
Daniel de La Touche”.
1962
é o segundo momento importante de reafirmação do mito, onde este reaparece com
muita força. Comemoram-se nesse ano os 350.º aniversário da “fundação francesa”
da cidade, com toda pompa e circunstância, são oito dias de comemorações
oficiais, com atividades culturais, cívicas, desfiles etc. Mário Meireles,
historiador de grande importância no contexto da historiografia maranhense da
segunda metade do século XX, autor de uma vasta bibliografia sobre história do
Maranhão, termina por ir à esteira de Ribeiro do Amaral, contribuindo para
transformar a versão da fundação francesa em “verdade” histórica. Em sua
Pequena História do Maranhão, ele afirma:
Daniel La Touche, Senhor de La Ravardière,
foi o chefe da expedição dos franceses, eram êles cerca de quinhentos homens e
vieram em três navios – “Regente”, “Carlota” e “Sant’Ana”. Aqui chegando, La
Ravardière fundou a cidade de São Luís, que é a capital do Maranhão, no dia 8
de setembro de 1612.
Astolfo
Serra, em seu Guia Histórico e Sentimental de São Luís do Maranhão, no capítulo
relativo à ocupação francesa, assim se expressa: “É dos capítulos mais bonitos
da história da cidade; talvez o seu mais belo colorido sentimental, o de ter
sido fundada por franceses. Constitui esse acontecimento motivo de orgulho para
os sanluisenses, que o invocam, sempre com ênfase, e com prazer dessas origens
de sua cidade” (1965). Percebe-se aí que a ideia de uma cidade fundada por
franceses, portanto, com origens supostamente singulares, de um passado
histórico vinculado à nobreza francesa dos seiscentos, encontra-se
completamente consolidada, pelo menos na visão dos historiadores e
intelectuais. Os anos de 1960 são de fato, imperativos na construção dessa
ideia de uma São Luís fundada por franceses.
* Professor de história, especialista em teoria e metodologia para o ensino da história e presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM).
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