quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O fundador esquecido III


Ana Luiza Almeida Ferro*




François de Razilly
Nenhuma avenida, praça ou monumento em São Luís guarda a sua memória. Nenhum colégio da capital maranhense ostenta o seu nome. Nenhuma corrida pelas ruas da cidade o tem como homenageado. Nenhum busto reproduz as suas possíveis feições, que, ao contrário das de seu companheiro mais celebrado, são por demais conhecidas, mercê de um retrato comumente reproduzido nos livros, constante do acervo de um museu parisiense. Nenhum palácio rende tributo ao proeminente papel que desempenhou no empreendimento imortalizado nas páginas da história do Brasil Colônia sob a denominação de França Equinocial.

E, no entanto, não é possível contar a história de São Luís sem mencioná-lo. Mais do que isso, não é possível fazê-lo sem reconhecer-lhe o protagonismo no nascimento da cidade, fundada a 8 de setembro de 1612.
Foi ele quem comandou, ao lado de La Ravardière, a nau capitânia, grande e fortemente armada, denominada Régent, em homenagem à Rainha Regente Maria de Médicis, integrante da frota de três navios que partiu de Cancale rumo ao Maranhão com aproximadamente 500 homens em 19 de março de 1612. Foi ele quem batizou a Upaon-mirim dos tupinambás, ou Ilha Pequena, com o nome de Sant’Ana. Foi ele o “grande morubixaba” gaulês nos contatos com Japi-açu, cacique principal de toda a Ilha de São Luís na época. Foram ele e Daniel de la Touche os lugares-tenentes-generais do Rei Luís XIII que selecionaram o local da edificação do Forte São Luís. Quando Nicolas de Harlay volveu à França, o que se deu pouquíssimo tempo depois da chegada ao Maranhão, este delegou ao nosso fidalgo, militar católico de prestígio do gabinete real, os seus poderes. Ele logo assumiu a posição de “senhor da colônia”, na precisa expressão de Lucien Provençal. Nos breves meses que esteve no norte do Brasil, encarregou-se das relações humanas, do reconhecimento da terra e da evangelização dos índios, com a preciosa assistência dos frades capuchinhos, entre os quais os cronistas Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux.
Foi ele a figura mais destacada a participar da cerimônia de 8 de setembro de 1612, cujo ápice deu-se no erguimento e fixação da cruz, na benzedura da ilha e no batismo do Forte São Luís e do Porto de Santa Maria, com a ativa participação dos tupinambás, a qual representou a fundação oficial da colônia da França Equinocial e o momento ritual da fundação da futura cidade de São Luís. A propósito, foi exatamente ele quem batizou de São Luís, em homenagem ao Rei Luís XIII, então menor, o forte que emprestaria o seu nome à cidade, da qual constituiu o núcleo originário, igualmente formado pelas construções de apoio e pelo Porto de Santa Maria. Claude d’Abbeville é deveras explícito neste ponto: “Erguida a cruz, [...] foi também benzida a Ilha, enquanto dos fortes e dos navios muitos canhonaços se disparavam em sinal de regozijo. O sr. de Rasilly deu ao forte o nome de Forte São Luís, em memória eterna de Luís XIII, rei de França e de Navarra [...]” (História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 73).
Sim, La Ravardière não fundou sozinho São Luís. O cofundador da cidade, a quem esta, na verdade, deve o nome, foi o Senhor de Razilly, de Oiseaumelle e de Vaux-en-Cuon, nascido em 1578, originário da região de Touraine.
Já na cerimônia de 1º de novembro de 1612 – de afirmação da autoridade da Coroa francesa e cunho especificamente político e complementar àquela de 8 de setembro –, em que os indígenas chantaram o estandarte real, contendo as armas da França, junto da cruz anteriormente cravada no solo da Ilha do Maranhão, o mesmo personagem e seu sócio La Touche decretaram as importantíssimas Leis Fundamentais da França Equinocial, marco legal pioneiro de manifestação de natureza constituinte elaborada nas Américas.
Foi ainda o almirante Razilly quem, de volta à França, salvou da destruição um ou mais exemplares, não obstante o desaparecimento de algumas partes, da obra Seguimento da História das coisas mais memoráveis, ocorridas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614, de Yves d’Évreux, cuja publicação fora autorizada em 1615 para, logo em seguida, ser abortada.
E, todavia, François de Razilly é o fundador esquecido de São Luís. Há aí, talvez, um quê de ressentimento filial, de possível contorno freudiano, pelo fato de ele não haver cumprido o seu compromisso de regressar ao Maranhão. Como “uma das velhas glórias da França”, na avaliação de Ferdinand Denis, Razilly poderia, com sua sólida experiência militar, sem dúvida, ter feito pender a balança para o lado gaulês na Batalha de Guaxenduba, às portas de completar 400 anos. Mas, na realidade, ele não abandonou a França Equinocial ou dela se desinteressou após retornar à pátria, antes se viu abandonado pela Rainha Maria de Médicis e por aqueles que, no princípio, o haviam apoiado na empreitada no norte do Brasil. Gastou sua fortuna para rearmar a nau Régent e permaneceu na França até lhe parecer perdida qualquer esperança de consecução de algum auxílio oficial à colônia no Maranhão.
Ele não merece, portanto, o esquecimento que lhe dedica a cidade que lhe deve muito mais do que o nome.

 




* Promotora de Justiça, Doutora e Mestre em Ciências Penais (UFMG) e sócia efetiva do IHGM.
 
 

3 comentários:

  1. Aproveito ainda o ensejo a informar que La Touche e Razilly estarão, por seus respectivos brasões de armas, a figurar no estudo em desenvolvimento de minha autoria, o Armorial Colonial do Maranhão e Grão-Pará.

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  2. (Não se publicou outro comentário meu, tendo refazê-lo)...
    Interessante o estudo. Esses pormenores, de "menores" nada tem, pois enriquecem sobremaneira a narrativa histórica, dá-lhe nomes e rostos. Meus cumprimentos a autora.

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    1. Obrigada por seu comentário. Veja também o brasão da Academia Ludovicense de Letras, que homenageia as três naus da expedição de La Touche e Razilly. No fim do ano lançarei o livro 1612: os papagaios amarelos na Ilha do Maranhão e a fundação de São Luís, em que aprofundo o tema. Cordialmente, Ana Luiza Almeida Ferro

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