No próximo sábado (28), às 19h, na Livraria Leitura do Shopping São Luís
a renomada historiadora Mary Del Priore, lançará aqui em São Luís seu mais
recente trabalho, publicado pela Editora Leya, o 1.º volume de uma tetralogia
denominada " Histórias da Gente Brasileira: colônia". (432
pgs. R$ 54,90).
A convite da Editora e da própria autora, sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM) estará participando como instituição convidada. Este evento é uma parceria entre Ed. Leya, IHGM e Livraria Leitura. Veja abaixo entrevista concedida pela autora ao Jornal O Globo.
A convite da Editora e da própria autora, sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM) estará participando como instituição convidada. Este evento é uma parceria entre Ed. Leya, IHGM e Livraria Leitura. Veja abaixo entrevista concedida pela autora ao Jornal O Globo.
Historiadora Mary Del Priore mapeia a
vida cotidiana no Brasil-colônia
por
Luciano Trigo
“Menos
preocupada com os grandes fatos, feitos e nomes, vitórias e fracassos que
marcaram a nossa nação que com aspectos esquecidos da vida cotidiana, ela
investiga os códigos da vida de personagens anônimos e esquecidos. Busca,
assim, registrar as verdadeiras histórias de pessoas comuns, mostrando como
elas se vestiam, onde moravam, o que comiam, o que faziam para se divertir,
como se relacionavam. Nesta entrevista,
Mary fala sobre a sua pesquisa, que lança luzes sobre a formação da nossa
identidade como brasileiros.”
- De
que maneiras o caráter e a identidade nacionais começaram a ser moldados já no
Brasil-colônia? Que traços sociais e culturais presentes na sociedade daquela
época persistiram como tipicamente brasileiros? Em outras palavras: nós já
éramos brasileiros na época da colônia?
MARY
DEL PRIORE: Se entendermos "ser brasileiro" um indivíduo capaz de
múltiplas sinergias culturais, resiliência às dificuldades e criatividade para
buscar soluções de inserção num meio desconhecido, sim. Pois isso foi o Brasil
dos primórdios. O período de colonização foi marcado pela luta entre problemas
e soluções, e o livro trata disso: de como nossos antepassados as encontraram,
no seu cotidiano. E não de conceitos ou teorias sobre identidade, palavra,
aliás, que não existia na época. Existia, sim, um sentimento de pertença: a um
Rei, a uma fé, a um lugar de origem que podia ser um vilarejo português, uma
nação africana, um porto na Europa do norte.
A
Terra de Santa Cruz foi o lugar do encontro de gente vinda de muitas direções
além de Portugal: franceses, holandeses, espanhóis, iorubás, fulas, mandingas
ou tapas, marujos "chins" a bordo dos navios que faziam comércio com
as Índias, "peruleiros" brancos, mulatos e negros, vindos da Bacia do
Prata, e, os habitantes originais, ou seja, tupis e guaranis. Uma globalização
precoce? Certamente. E uma efervescência de línguas, de saberes, de
experiências que permitiram a instalação de gente a mais diversa, e a
consequente exploração da terra. O livro trata, também, do que movia essas
pessoas: medos, ambições, paixões.
-
Sua pesquisa se detém na vida cotidiana, registrando aspectos da alimentação,
do mobiliário, da habitação. Cite os casos mais curiosos revelados pela sua
pesquisa em relação a esses diferentes temas.
MARY:
O livro destaca as trocas culturais que permitiram essa gente se adaptar.
Alguns exemplos: na culinária, o azeite de oliva importado do Reino a custo
altíssimo foi substituído por azeite de açaí, de coco, de dendê, "tempero
essencial da maior parte das viandas dos pretos e ainda dos brancos criados com
eles”, segundo o cronista Luiz dos Santos Vilhena, no século XVIII. Na
Amazônia, empregava-se o azeite de peixe-boi, em Minas a gordura do bicho de
taquara e, em toda parte, banha de porco. Além da tradicional, a manteiga era
extraída dos ovos de jabuti, de peixes como o camurupim e o jaú ou de
tartarugas. Os óleos vinham da prensagem do amendoim, da castanha de caju, das
amêndoas da macaúba, da castanha da pindoba. E em regiões de criação de porcos,
usava-se o toucinho, que, em meados do século XIX, passou a ser importado dos
Estados Unidos.
No
caso do mobiliário, a rede indígena, transportável e fresca, além de adaptada
ao clima tropical, retardou a difusão do leito ou do catre. Os raros exemplares
desses móveis pertenciam, no século XVII, a autoridades, funcionários da Corte
ou colonos abastados. Em Minas Gerais, a influência do Norte de Portugal se fez
sentir na segunda metade daquele século. Surgiram leitos com balaustradas e
colunas sustentando dosséis, mas sem torneados, pois não havia... torno!
Já,
na construção das casas, o e estilo tendia a repetir técnicas ancestrais. Da
Goa portuguesa, herdamos um “saber fazer” repetido nos arredores do Rio de
Janeiro: as casas eram cobertas de palha, tinham portas estreitas, e as
esteiras serviam para dormir ou sentar para comer. A bosta de vaca misturada ao
barro das paredes ajudava a combater insetos. Um único cômodo servia como
cozinha, quarto e sala, embora o fogão de lenha se situasse, na maior parte das
vezes, do lado externo da moradia, sob o que, em São Paulo, se chamava uma
“tacaniça”: um puxado, lição dos indígenas. Já, o óleo de baleia para ligar a
argamassa das construções foi contribuição dos africanos, assim como o manuseio
do adobe, tão presente em Minas Novas ou Paracatu, em Minas Gerais. Bancos de
coral ou conchas permitiam a fabricação da cal, matéria "alva e boa para
guarnecer e caiar”, como se dizia na época, herança mourisca no sul de
Portugal.
- As
relações de trabalho eram atravessadas pela exploração, começando pela
escravidão. Mas que traços peculiares a escravidão assumiu no Brasil, no
sentido da convivência e da interação entre senhores e escravos apontadas, por
exemplo, por Gilberto Freyre?
MARY:
Não tivemos uma escravidão, mas "escravidões" que variaram no tempo e
no espaço colonial. Também é bom lembrar, que a origem dos cativos vindos do
África variou entre os séculos XVI e XVIII. Houve maior incidência de nações do
Golfo da Guiné até o século 18, e daí para frente, uma hegemonia do tráfico com
Angola e Moçambique. Nas pequenas propriedades agrícolas, como vemos em Minas,
ou no litoral entre roceiros-pescadores, os cativos tinham suas próprias casas
e roças e grande intimidade com seus senhores.
Durante
o período da mineração, em que o tráfico multiplicou a imigração de escravos, a
rigidez no trabalho aumentou, mas, muitos cativos conseguiram comprar sua
liberdade graças ao garimpo nos Dias Santos ou domingos, ampliando o número de
libertos e forros nas cidades do Ouro. Nos grandes engenhos de açúcar, na época
da colheita e do plantio, o trabalho era de sol a sol. Mas os conhecimentos que
tais escravos consolidavam como carpinteiros, pedreiros, cirurgiões barbeiros,
permitiram a muitos se alforriar e seguir vendendo seus serviços aos antigos
senhores. Um "mestre de açúcar", por exemplo, encarregado de
manipular a caldeira e extrair o açúcar mais fino possível, ganhava
gratificações.
Nos
centros urbanos, os "escravos de ganho" se movimentavam sem limites,
dormiam fora e pagavam aos proprietários o devido ganho. O que auferissem a
mais, usufruíam ou economizavam para comprar a própria liberdade e a de
familiares. As mulheres, sobretudo, passavam de escravas a senhoras, e seus
testamentos revelam níveis de riqueza nunca imaginados. No Nordeste e Sul,
áreas de criação de gado, os escravos eram em menor número. E, muitas vezes
aquinhoados com gado que multiplicavam, compravam sua liberdade se tornando
vaqueiros livres. Nas diversas escravidões, nada era estático e múltiplos
acordos davam maleabilidade a vida de milhares de pessoas.
-
Sobre a intimidade e a vida conjugal, afetiva e sexual no Brasil-Colônia, que
elementos chamaram a sua atenção? Cite exemplos.
MARY:
No casamento todo o cuidado era pouco. Normas católicas regiam as práticas dos
casados. Até para ter relações sexuais, as pessoas não se despiam. As mulheres
levantavam as saias ou as camisas e os homens, abaixavam as calças e ceroulas.
Mesmo nos processos de sedução e defloramento que guardam nossos arquivos vê-se
que os amantes não tiravam a roupa durante o ato. Um exemplo, em Paraty, Rio de
Janeiro, no início do século XIX: “e que ele testemunha presenciara e vira a
ofendida e o Réu estarem no mato juntos e unidos um por cima do outro a fazerem
movimento com o corpo, e que ele testemunha vendo este ato, voltou sem dar a
perceber a ninguém”. Nem uma palavra sobre despir-se.
As
práticas amorosas, contudo, eram rigidamente controladas. Toda a atividade
sexual extraconjugal e com outro fim que não a procriação era condenada.
Manobras contraceptivas ou abortivas não eram admitidas. O casal deveria se
portar com pudor, amizade, discernimento, moderação e sem nenhum impulso de
volúpia. A manifestação de ardor sexual era considerada, como queria são
Jerônimo, uma forma de adultério, porque conspurcava a conjugalidade. A noção
de debitum ou débito conjugal, uma dívida ou dever que os esposos tinham que
pagar quando sexualmente requisitados, torna-se lei. Associava-se o prazer
exclusivamente à ejaculação, e por isto era “permitido” aos maridos prolongarem
o coito com carícias, recorrendo até a masturbação da parceira, a fim de que
ela, “emitisse a semente”, justificando a finalidade do ato sexual.
Ao
ser definido como uma conduta racional e regulada em oposição ao comércio dito
apaixonado dos amantes, o comércio conjugal só era permitido em tempos e locais
oportunos. Consideravam-se impróprios os dias de jejum e festas religiosas, o
tempo da menstruação, a quarentena após o parto, os períodos de gravidez e
amamentação. Sobre o papel da mulher durante o coito, fazia-se eco aos
conselhos de Aristóteles: que nenhuma mulher, mas, nenhuma mesmo, desejasse o
lugar de amante de seu marido. Isso queria dizer que a esposa não devia
demonstrar nenhum conhecimento sobre sexo. Somente casta e pura, ela seria
desejada. Sua ingenuidade seria prova de sua honradez.
As
regras da Igreja católica pareciam se esconder sob a cama dos casados,
controlando tudo. Proibiam-se ao casal as práticas consideradas “contra a
natureza”. Além das relações “fora do vaso natural”, consideravam-se pecados
graves “quaisquer tocamentos torpes” que levassem à ejaculação. Assim, se
perseguiam os “preparativos” ou preliminares ao ato sexual. A prática, bastante
difundida, aparece em tratados de confissão encarregados de simular o diálogo
entre o pecador e o padre: “Pequei em fazendo com algumas pessoas na cama,
pondo-lhes as mãos por lugares desonestos e ela a mim, cuidando e falando em
más coisas”, diria o primeiro. “Já pagar seus pecados com penitências!”, diria
o segundo.
O
sexo admitido era restrito exclusivamente à procriação. Donde a determinação de
posições “certas” durante as relações sexuais. Era proibido evitar filhos,
gozando fora do “vaso”. Era obrigatório usar o “vaso natural” e não o traseiro.
Era proibido à mulher colocar-se por cima do homem, contrariando as leis da
natureza. Afinal, só os homens comandavam. Ou colocar-se de costas,
comparando-se às feras e animalizando um ato que deveria ser sagrado. Certas
posições, vistas como “sujas e feias”, constituíam pecado venial, fazendo com
que “os que usam de tal mereçam grande repreensão, por serem piores do que
brutos animais, que no tal ato guardam seu modo natural”, dizia a Igreja.
Outras posturas conhecidas como “à la brida”, “como carneiro pastando” ou a dos
“malabaristas” eram ilícitas. Controlado o prazer, o sexo no casamento virava
débito conjugal e obrigação recíproca entre os cônjuges. Negá-lo era pecado, a
não ser que a solicitação fosse feita nos já mencionados dias proibidos, ou se
a mulher estivesse muito doente. Dor de cabeça não valia. O que se procura é
cercear a sexualidade, reduzindo no mínimo as situações de prazer.
-
Seu livro pode ser associado à chamada Micro-História, por dar pouca
importância aos grandes personagens e acontecimentos?
MARY:
Meu livro nada tem a ver com a Micro-História, que virou uma etiqueta para
abordagens muito diferentes. Até seus pais fundadores acabaram por divergir nas
suas pesquisas. Levi e Poni preocuparam-se com as relações entre indivíduos e
coletividade e Carlo Ginzburg voltou-se para os estudos do que chamou de
"paradigmas indiciários", baseados na antropologia criminal e na
história da arte. Nada fiz nesse sentido, pois, nada quero explicar. Quero,
sim, descrever, ou melhor ver! Desejo levar o leitor a compreender o
"como" aconteceu. Não o "por que" aconteceu. Quero contar
como viviam, se alimentavam, trabalhavam, criavam, inventavam, burlavam, amavam
e traíam nossos antepassados. E como se trata de uma tetralogia – Colônia,
Império, República Velha e Nova – mostrar como regularidades e fenômenos
repetitivos variaram ou evoluíram através dos tempos.
- Já
há várias décadas, a visão da História como feita por grandes indivíduos vem
sendo desqualificada no meio acadêmico. Mas, sem desconsiderar o papel das
forças abstratas, das longas durações, dos condicionantes econômicos e
culturais você não acha que exageraram nessa desqualificação? A História que
estamos testemunhando hoje, no Brasil, parece fortemente determinada pela ação
de indivíduos específicos: fossem outros os atores, nada disso estaria
acontecendo. Você concorda?
MARY:
Hoje ou ontem, no cenário histórico, sempre haverá indivíduos de destaque – e a
volta das biografias, por tanto tempo abandonadas pelos historiadores e feitas
por bons jornalistas - recupera tais personagens. Mas preferi me deter em
indivíduos anônimos ou pouco conhecidos – e dou vários exemplos no livro – que
mudaram suas vidas e histórias. Um exemplo impressionante foi o do escravo
Manuel Dias de Oliveira. Originário de Santana do Macacu, Rio de Janeiro, em
1763, fixou-se muito jovem na capital, onde praticava como ourives.
Impressionado com tanto talento, seu senhor o enviou para estudar no Porto.
Morrendo seu benfeitor, ele se transferiu para Lisboa e se matriculou na Real
Casa Pia que funcionava no Castelo de São Jorge. Seu sucesso foi tão grande que
ele foi escolhido para, juntamente com o já célebre Domingos Antônio de
Sequeira, ir cursar a Academia de São Lucas de Roma. Lá, se tornou assistente
de Pompeo Battoni, retratista da nobreza e precursor do neoclassicismo na
pintura. Quando Napoleão invadiu os estados pontifícios, Manuel refugiou-se em
Gênova, de onde retornou a Portugal depois de uma ausência de dez anos. Em
1800, foi nomeado professor régio de uma aula de Desenho e Figura, criada no
Rio de Janeiro, época em que retornou ao Brasil. Em Portugal, Manuel era
conhecido como “o Brasiliense”. Aqui, se tornou “o Romano”.
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