Do site Revista de História da BN
por Glaucia Malerba Sene*
Movimentos migratórios antigos na América |
Há
pelo menos 12 mil anos, os primeiros hominídeos chegaram às Américas,
caminhando lentamente, em pequenos grupos e por diferentes caminhos. Estas
migrações foram multiétnicas e descontínuas. Hoje, já se sabe que os habitantes
pré-colombianos deste continente percorreram ao menos quatro levas migratórias:
três passando pelo Estreito de Bering (em épocas distintas) com chegada ao
Alasca – e, em uma delas – posterior migração para Patagônia e sul do Chile. E
pelo menos uma (ainda mais antiga) que teria vindo pelo Oceano Atlântico da
Europa, cujo destino foi o sudeste dos Estados Unidos. Mas a trajetória até a
aceitação científica das múltiplas origens dos nossos ancestrais foi longa e
tortuosa.
Durante
as primeiras décadas do século XX, por exemplo, estudiosos norte-americanos
apostaram suas fichas na existência de apenas um modelo preponderante de
migração para este continente, que consistia na vinda de grupos de caçadores de
animais de grande porte da Sibéria em direção ao Alasca. Os ancestrais dos atuais esquimós teriam
chegado ao continente em três levas – entre 12 e 6 mil anos atrás, durante o
último período glacial. A teoria chamada “Clovis First”, no entanto, deixava
algumas brechas na pré-História. Dúvidas que só começaram a ser respondidas em
1975, com a análise do fóssil brasileiro Luzia, pelo bioarqueólogo da Universidade
de São Paulo, Walter Neves.
O
crânio da “paleoíndia” veio à tona pela antropóloga física Marília Alvim, após
escavações nos sítio da Lapa Vermelha, em Minas Gerais. E logo se tornou
ferramenta fundamental neste processo de mudança de paradigmas acerca das rotas
migratórias, já que Luzia possui traço negroide, bem diferente do mongoloide -
predominante nos ancestrais da América do Norte -, conforme indicou a pesquisa
de Walter Neves. Sua teoria se tornou ainda mais clara após ter sido feita sua
reconstituição facial.
Walter Neves |
Antes
destes estudos se concluírem, no entanto, a arqueóloga francesa Annete
Laming-Emperaire, responsável pela Missão Francesa no Brasil, já havia
confirmado presença humana na mesma região mineira com datações variando entre
11 e 7 mil anos de idade. E, cem anos
antes, o naturalista dinamarquês Peter Lund já havia feito as primeiras
descobertas da arqueologia brasileira na região de Lagoa Santa, Minas Gerais,
sem saber que contribuiria para alimentar a posterior reviravolta nas diásporas
migratórias americanas. Na época de Lund, ou seja, final do século XIX, foram
encontrados dezenas de sítios arqueológicos em cavernas da região e centenas de
esqueletos, muitos dos quais conduzidos à Europa, especialmente à Dinamarca
para serem estudados por especialistas.
Nos
últimos anos, outros registros arqueológicos com características semelhantes
foram identificados também em Santana do Riacho, Minas Gerais e Caatinga de
Moura, Bahia, no Brasil, além de achados nos Estados Unidos, no México, no
Chile, na Colômbia e na Argentina. Walter
Neves coletou todas estas informações e publicou o resultado de sua pesquisa,
indicando a possibilidade da existências de migrações americanas entre 20 e 25
mil anos atrás.
Outros casos
Na
região de Monte Verde, no sul do Chile, escavações e estudos arqueológicos
também realizados na década de 1970 indicaram que grupos caçadores-coletores
haviam passado por ali há pelo menos 12.500 anos. A informação inviabilizava a
teoria clássica migratória via Estreito de Bering para esta região, através do
interior do continente americano. Ou seja, os “paleoíndios” daquela região do
Chile teriam vindo também do norte do continente, mas via costa do Pacífico sem
ultrapassar os limites da cordilheira. Surge, então, mais uma possibilidade
migratória: o deslocamento via costa do Pacífico, que explicaria perfeitamente
a rápida chegada à América do Sul, especificamente em Monte Verde, justificando
ainda outras datações antigas encontradas na Patagônia e sul do Brasil.
Outras
descobertas, como de sítios arqueológicos no Parque Nacional da Serra da
Capivara, no Piauí, também figuram o quadro de achados antigos do Brasil. Os
vestígios de paleoíndios na região datam algo em torno de 50 mil anos atrás.
Tais resultados levaram os pesquisadores envolvidos a sugerirem a chegada do
homem ao local por meio de migrações via oceano Atlântico, cujos grupos,
provenientes da África, teriam vindo em pequenas embarcações, em meio às
inúmeras ilhas que afloravam na travessia, em função da oscilação do nível do
mar. Esta hipótese migratória ainda encontra resistência no meio científico
internacional.
Mas
o caminho via oceano Atlântico para outras regiões da América chega a ser
cogitado em outros casos, como o dos “paleoíndios” que se assentaram no sudeste
dos Estados Unidos, provavelmente entre 25 e 17 mil anos atrás. Desde 1998, os
pesquisadores Dennis Stanford e Bruce Bradley, da universidade britânica do
Exeter, vem defendendo a vinda de grupos da Europa para a costa leste norte-americana,
à bordo de pequenas embarcações. Foram encontrados sítios arqueológicos nos
estados de Maryland, Pennsylvania, Virgínia, Florida e Delaware que apresentam
vestígios de cultura material semelhante aos encontrados em escavações no Velho
Continente.
Sambaquis e tupiguaranis
As
migrações sempre foram necessárias entre os grupos de caçadores-coletores. No Brasil, não poderia ser diferente, os
deslocamentos persistiram ao longo do tempo, ganhando força por volta de 6 mil
até o início da era cristã, quando grupos interioranos seguiram em direção ao
litoral, em razão do aumento da temperatura e da maior disponibilidade de
alimentos na costa, dando origem aos conhecidos sambaquis. Pouco se sabe dos
percursos escolhidos para estas migrações. Há indícios de contatos com outras
populações, especialmente no sul do Brasil, dada a monumentalidade e
diversidade dos artefatos encontrados nessa faixa litorânea. As datações mais
antigas estão no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Paraná, entre 7.500
e 6.000 anos.
Coincidentemente,
no mesmo período em que os sambaquieiros entravam em colapso, tinha início mais
um novo ciclo de migrações, desta vez de grupos horticultores, vindos da
Amazônia, detentores de uma organização social mais consistente e uma produção
material tecnologicamente mais complexa. Englobados na tradição tupiguarani no
último quartel do século XX, não representam uma unidade étnica, social e
cultural, tendo sido recentemente denominados na arqueologia brasileira por
“grupos portadores de cerâmica tupi-guarani”.
Há
pelo menos três grandes propostas para a migração dos grupos tupi-guarani. Uma
delas indica a existência de movimentos migratórios advindos da Amazônia
Central – ou via rio Amazonas em direção à foz - e de lá teria seguido pelo
litoral até São Paulo, compondo o ramo Tupinambá. A segunda indica a origem aos
Guarani pelos afluentes dos rios Madeira e Guaporé, se disseminando pela bacia
dos rios Paraná e Paraguai no sul do Brasil. A terceira e mais distinta, tem
como ponto de dispersão a mesma região amazônica: os grupos Tupi, migrando
unicamente pelo Brasil central, atingido o litoral na região sudeste,
possivelmente através do Vale do Paranapanema. Neste ponto, uma parte teria
seguido o rumo norte e outra, sul, dando origem aos Tupinambá e Guarani.
Se
os pontos de partida e chegada dos grupos caçadores-coletores, sambaquieiros e
horticultores já estão claramente identificados, seus verdadeiros itinerários
ainda são obscuros. Os rastros dos caminhos milenares percorridos por estes
povos foram sendo apagados pelo tempo e a pesquisa arqueológica tenta refazê-los
pouco a pouco, dia após dia.
*Glaucia Malerba Sene é professora colaboradora do Programa de
Pós-graduação em Arqueologia do Museu Nacional (UFRJ) e autora da tese Indicadores de gênero na pré-história
brasileira: contexto funerário, simbolismo e diferenciação social. O caso
da Gruta do Gentio II, Unaí, Minas Gerais (USP, 2008).
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